domingo, 10 de fevereiro de 2008

O Génio do Lugar

por Catarina Portas
9 fevereiro de 2008

Quem por lá passou, nunca mais o esquece. O Bolhão, esse mercado de "rara largueza e desafogo" como o descreve o infalível Guia de Portugal, era em si um "pequeno mundo buliçoso e polícromo", oficiado por "mulheres possantes e desembaraçadas" (e viva o eufemismo...). Ultimamente, cada vez mais abandonado e degradado, foi perdendo o vigor mas não a magia.
Bastava atravessar-lhe a passadeira de ferro, contemplar-lhe as cores naquela luz doce coada pela lonas riscadas, reparar-lhe nas cantarias de pedra, espreitar-lhe as lojas de prateleiras arrumadas há décadas, ouvir-lhe o esvoaçar dos pássaros e o cantar das vendedoras para sentir o espírito que o encanta. Há um nome para este fenómeno: genius loci, o génio do lugar. São muito raros e preciosos os lugares que possuem essa força que lhes transcende as paredes, entre as paredes dos quais a atmosfera nos transcende a nós também. Por isso, por causa desse génio, o Bolhão se tornou um símbolo do Porto. Mas no passado dia 30 de Janeiro a Câmara do Porto assinou contrato com uma empresa imobiliária para expulsar o génio do Bolhão e transformá-lo no terceiro centro comercial da zona. Dizem que não, que não é nada disso, mas nós sabemos que sim - já percorremos os corredores do Campo Pequeno sem o conseguir distinguir de qualquer outro shopping, por isso, por favor, tenham a hombridade de não nos mentir. O que o novo projecto, apresentado num único esboço, prevê é a demolição de todo o interior do Bolhão, a construção de dois pisos de estacionamento, mais um ocupado por um hipermercado e "outras lojas âncora", outro com cafés e restaurantes e um recanto de mercado de frescos (3% da futura área total) e, ainda, habitação. A isto eu chamo um centro comercial. Mas claro, convém preservar-lhe um certo perfume, tão adequado à futura campanha de marketing, e por isso continuarão a chamar-lhe mercado. Será, por assim dizer, um shopping temático, um Bolhão à la Disneyland e de patetas fazemos todos nós, entre plásticos e neons. As câmaras deste país adoram fazer-nos acreditar que os velhos e imponentes, grandes e centrais mercados são espaços com função desactualizada. Em Paris, há meia dúzia de anos, morei perto de um mercado antigo e, surpresa, ele continuava pujante. Tinha era horários compatíveis com a vida actual (abria de manhã e ao final da tarde, quando os habitantes voltam para casa), possuía bancas de agricultura biológica e apostava seriamente em alimentos já preparados ou comida confeccionada pronta a levar. Nessa mesma altura, punha-se pela primeira vez em cima da mesa a hipótese de implodir o centro comercial de Les Halles, projecto falhado, erguido onde outrora se situava o grande mercado abastecedor da capital francesa...O Bolhão não é dos portuenses. Será de todos aqueles que lhe souberem reconhecer o génio que nele mora. E que não o deixem fugir - como já aconteceu em Tavira, na Ribeira de Lisboa, no Ferreira Borges do Porto, etc, etc, etc.

Catarina Portas é a signatária nº 1972 da petição on line "Impedir a demolição do mercado do Bolhão do Porto", actualmente em curso.