terça-feira, 8 de julho de 2008

Texto de opinião

Construção

"Ser homem é ser responsável. É sentir que colabora na construção do mundo."
[Antoine de Saint-Exupéry]


Foi o voltar a sentir que todos temos um papel na construção do futuro, não do mundo, neste caso, mas da cidade, que fez com que o Porto tenha assistido desde Janeiro a um aumento da capacidade de intervenção e a percepção da responsabilidade que temos na preservação do património, nomeadamente o Mercado do Bolhão. Catalisada por estudantes, integrando comerciantes e abrangendo um inúmero leque de pessoas, a vontade de contestar o que parecia incontestável - a alienação do edifício durante 50 anos a uma empresa holandesa – ganhou vida, cresceu, amadureceu e já tem história própria. Depois das inúmeras acções que tiveram lugar nestes meses, o debate chegou à Universidade do Porto no âmbito do Porto-Redux, tendo como objectivos abrir a UP, através FAUP e respectivos estudantes e arquitectos ao debate das problemáticas dos processos de reabilitação urbana, e subsequentemente discutir e apresentar hipóteses de reabilitação urbana da cidade do Porto, não esquecendo uma análise crítica e dinâmica.


A participação cidadã neste processo vai muito mais além do que a mera contestação, e valorizá-la apenas por isso é extremamente redutor. Ela revela mais do que preocupação com o que é (ainda) de todos: revela uma bem fundamentada reflexão, uns mais profundamente do que outros é certo, dos prós e os contras, do verdadeiro e do falso. É certo que há ideias que parecem ser más à primeira vista e que uma análise mais aprofundada revela o contrário. E há outras que, após a reflexão, demonstram ser precisamente aquilo que pareceram: más. Há, no entanto, que esclarecer três ideias ainda recorrentes:


A primeira é de que o edifício não vai ser demolido nem vai deixar de ser um mercado. Durante recolha de assinaturas para abaixo-assinado (que renuiu mais de 50.000 foi talvez a dúvida mais vezes invocada. Dizer que demolir o interior do edifico não é demoli-lo é fácil, mas só até o imaginarmos como a nossa própria casa. O património classificado é não só o exterior, a fachada, enfim, a face visível ao observador apressado, mas sim todo o edifício, exterior e interiormente, na complexidade que tem como um todo. E, como golpe de misericórdia para as dúvidas, está o facto de a própria promotora ter admitido a sua demolição inevitável. Por outro lado, dizer que um edifício é um mercado por ter 3% de área reservada para tal é o mesmo que dizer que a minha faculdade, pelo facto de ter uma cantina, é um restaurante. Convém deixar a nota de que, no Bolhão, não é só o património arquitectónico que está classificado, mas também a sua actividade económica. Será o nosso objectivo, enquanto cidadãos do Porto e responsáveis pelo futuro das nossa valências, o de ter um mercado-museu, ou ter um mercado vivo? Porque basta ir lá uma vez para perceber que sim, está vivo e ainda bem que assim é. O mercado de frescos, genuinamente dinâmico e inserido no Porto cosmopolita, faz do Bolhão o ícone turístico que é.

A segunda ideia é a de que o movimento de contestação, pese a sua legitimidade em democracia, é fruto de uma análise superficial do tema. Tal percepçãodemonstra uma certa tendência, presente na nossa sociedade, em associar a contestação àausência de uma reflexão séria, desvalorizando a análise feita, contínua e conjuntamente, por todos os envolvidos. Esta ideia ignora também que, além de todos os cidadãos participativos directa ou indirectamente interessados na problemática, estiveram e estão envolvidos profissionais de arquitectura, sociologia, arte, economia e outras áreas em íntima relação com o tema. Se é certo que muito se pode especular sobre a validade dos argumentos invocados, contra-argumentar e debater, já o questionar a profundidade desta análise revela pura e simplesmente pouca atenção ao tema.

A terceira é a ideia, ainda muito instalada, de que espaço público e modernização são conceitos mutuamente exclusivos, em consonância com a política da desresponsabilização do Estado que impera actualmente. Sob esta perspectiva, a única forma de reabilitar qualquer valência pública seria a sua alienação para a esfera privada por falta de verbas e de competência. Sabendo que a renda é de 380 mil euros anuais, sabendo que esta pode ser mais do dobro caso o Bolhão seja reabilitado, sabendo que existe um projecto de reabilitação e modernização do Mercado aprovado e já pago com dinheiros públicos em 1998 (da autoria de Joaquim Massena) não deixa de ser irónico que a concessão por 50 anos a uma empresa privada seja a solução encontrada pela Câmara, a mesma que tanto cortou no apoio à cultura, que aumentou as rendas dos bairros municipais, mas que não tem problemas em gastar mais de meio milhão de euros em propaganda.


Sob a administração privada, o Bolhão deixa de ser um espaço público para se transformar num espaço aberto ao público. Parecido? Não tanto assim. O espaço privado, pese ser aberto ao público, é construído, vocacionado e gerido não de forma a servir os interesses dos portuenses mas de forma a maximizar os lucros da empresa, objectivo último e natural desta. Na óptica privada, não tem de haver um interesse em preservar o património arquitectónico, cultural e humano, a não ser que isso seja fonte de lucro. E até que ponto estamos dispostos a sacrificar o que é de todos (e da nossa responsabilidade) para aumentar lucros que nem sequer vão para a Câmara, gestora legítima dos dinheiros públicos, mas para a administração de uma empresa holandesa? E mesmo ignorando esse facto, será solução a conversão em mais um centro comercial - o terceiro no mesmo Km2 - quando existe um projecto de reabilitação, aprovado por unanimidade, já pago e pronto a ser executado e que só ainda não arrancou por falta de vontade política? Barcelona, tendo perfeita consciência do potencial dos seus mercados, reabilitou-os conservando a sua traça original (sim é possível!), tornando-os edifícios inclusivos, atractivos pelo que são – mercados - e não por outra coisa qualquer, e revelando um potencial turístico que já superou em muito as expectativas. O Porto teve uma ideia melhor: decide fazer um Centro Comercial.


Miguel Jeri, 29 de Maio de 2008

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