segunda-feira, 10 de março de 2008

Artigo de Clara Ferreira Alves "O Bolhão que se f..."

"O Bolhão que se f...!"

de Clara Ferreira Alves (imagem retirada do Expresso)

EU GOSTO do Mercado do Bolhão, pedaço obrigatório do itinerário de qualquer campanha eleitoral. Apesar de todos irem lá mostrar os sorrisos às peixeiras do Bolhão, o Bolhão vai abaixo e as peixeiras que se f..., como diz uma delas. "E agora querem expulsar-nos daqui, f...-se!" Vamos lá ver, vamos lá ver se não. Se salvamos o Bolhão. As câmaras municipais, sobretudo as das grandes cidades, têm tendência para pensar que as cidades lhes pertencem e que se dobram aos seus desígnios. A participação dos cidadãos nas decisões de governo da cidade, e do governo dos bairros, é restrita e quase inexistente. A lassidão que entorpece os movimentos tem a ver com a mania de acharmos que compete ao estado resolver tudo e que nos limitamos a eleger funcionários políticos e a pagar impostos. Em Lisboa, é manifesto o desprezo dos lisboetas pela cidade, visível no modo como as ruas são tratadas como lixeira, cinzeiro do carro ou casa de banho canina. No modo como os parques e jardins são ignorados. No modo como os carros de fora da cidade invadiram a cidade e ocuparam todo o espaço disponível.


Uma cidade tem de ser habitada e vivida por dentro e os mercados são uma parte histórica da vida das cidades. As cidades não podem ser dadas nem vendidas a quem dá mais, nem a troco de milhões e ideias de "progresso" podemos alienar património que é de todos. Em Lisboa, vimos o desfecho da história do Parque Mayer e do Casino da Expo, e dos milhões pagos pela Estoril-Sol que ninguém sabe muito bem onde andam e para que servem. Vimos como um edifício público foi vendido a privados depois de modificada a lei pelo Governo sem que a cidade beneficiasse. Perdeu-se um edifício e ganhou-se um casino. O Parque Mayer lá está, decrépito, sem Frank Ghery e com ervas daninhas.


A lição do Parque Mayer e a da irresponsabilidade dos governantes não foi aprendida. No Porto, uma empresa holandesa propõe-se, com contrapartidas irrelevantes, um milhão de euros e um por cento dos lucros ao fim de 10 anos, ficar com a concessão do Bolhão por 50 anos e destruir todo o mercado deixando apenas a fachada, e "arrumando" os vendedores num andar como animais no zoológico, numa espécie de parque temático. Olhem e vejam o que era um mercado antigamente. O negócio é uma mina de oiro, lojas e habitação, estacionamentos, o costume. Mais um centro comercial onde já existem dois ou três, iluminados a luz branca, artificiais e clínicos, com as "franchises" do costume. Em Cascais, José Luís Judas decidiu tapar toda a frente marítima junto à estação de comboios instalando um mono na paisagem que é hoje um atentado civilizacional e patrimonial. Ninguém aprecia o mono, usam-no, apenas. Cascais, uma vila junto ao mar que podia e devia ter um mercado, ficou com mais um "shopping".

Em Lisboa, os mercados vão também acabando, "reconvertidos". Veja-se a morte da Ribeira, que era um mercado belíssimo para ir de manhãzinha e uma tradição que devia ter sido preservada e recuperada. A Câmara devia ter gasto dinheiro a tentar fazer os que se fez em Barcelona com La Boquería e com outros mercados, revitalizando os pontos de venda, investindo na formação e nas estruturas, abrindo restaurantes e balcões de comida, ajudando à recuperação do mercado como ponto de encontro cívico e humano e lugar de felicidade. E onde seja possível comprar flores e produtos frescos e escapar ao mundo liofilizado do hipermercado. Na Praça do Príncipe Real, em Lisboa, funciona um pequeno mercado de produtos biológicos que é um sucesso, com pessoas que ali se encontram, abastecem, tomam café, lêem o jornal, almoçam, passeiam e trazem as crianças e os cães para brincar. São lugares como este que devem preocupar as câmaras, lugares ao ar livre, vivos e vividos, sem música engarrafada nem falsos passarinhos que pipilam nas árvores de plástico. Este é o modelo. La Boquería é um dos lugares mais visitados e desfrutados de Barcelona, e lembra um bazar do Oriente, aberto e simples, cheio de coisas para comer e beber. Os mercados ao ar livre do Cairo ou de Telavive, de Mumbai ou de Londres, existem para nos lembrar um modo de vida mediterrânico e oriental, autorizado pelo calor e o clima. E, mesmo num clima frio, os mercados resistem porque fazem parte da vida da cidade. A destruição das Halles, em Paris, para construir aquele deprimente e mal frequentado "shopping", foi um erro urbanístico e gerou arrependimento. Em compensação, no bairro do Marais, apostou-se no comércio em pequena escala e na gastronomia ao ar livre, nos cafés de passeio. Nas cidades, o conservadorismo é um pensamento precioso.

Rui Rio tem governado até aqui como quis e muitas vezes contra a cidade. Se levar para a frente a sua intenção de se desfazer do Bolhão e assim autorizar a sua destruição, apesar do grande movimento cívico contrário, vai cometer o erro político da sua carreira. Pode ter a certeza de que a cidade perderá história e não ganhará progresso nem beleza. E a cidade não lhe perdoará. Terá o agradecimento da TramCroNe. Não chega. Com esta decisão, Rui Rio pode bem f...-se, com a devida licença e reticências. Tal como o Porto e o Bolhão.

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